quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

sem título #2

Você não me deixa dormir, eu pensei, porque você tem um despertador preto ao lado da cama, um despertador gigantesco, igual ao da minha avó, com o desenho de uma fazenda, e aquele tique-taque me perturba, me perturba junto com o ranger dos teus dentes, que não pára jamais. Não entendo como alguém tem o mesmo despertador desde os 12 anos, mas vou esquecer de te perguntar isso quando me levantar. Você não me deixa dormir, porque insiste em segurar o meu braço e prende meus dedos embaixo dos teus, apóia o peso do teu corpo em mim, o que me faz sentir como se pudesse te proteger, mesmo que minha mão seja a metade da tua, e que eu fique dolorida por não ter força para te deitar para o outro lado e ficar mais a vontade. Você não me deixa dormir, eu gosto de acordar de madrugada para ir a cozinha acender um cigarro, você odeia meus cigarros, diz que meus dentes ficarão amarelos, reclama do meu pulmão estragado e que vou morrer cedo, se chateia quando eu digo que não me importo com a velhice. Pois deveria ligar, sua tonta, você diz, porque nós temos muito o que viver, eu pergunto se nós é igual a nós dois, eu e tu, você faz cara de tolo e responde um talvez muito baixo, igual ao barulhinho que você faz quando respira, sim, você ronca de vez em quando, por mais que negue. Você não me deixa dormir porque eu gosto de conversar na cama, de falar besteira, só durmo tranqüila depois de esvaziar minha mente de qualquer pensamento idiota, mas você fecha os olhos e nem me ouve, só diz, ‘ei, bons sonhos!’, nem me beija, nem faz um afago, no início estranhei, depois me dei conta que o teu rosto risonho e os teus pés nas meias felpudas valem mais para mim que qualquer convenção noturna.

-Que foi?

-Você não me deixa dormir.

-Encosta aqui, vem, fecha os olhos... boa noite...